Entre os diversos milagres descritos nos Evangelhos, poucos são tão impressionantes quanto a libertação do endemoninhado de Gadara (ou Gerasa). O episódio fala de um homem — ou dois, segundo Mateus — que vivia entre os sepulcros, aterrorizando os moradores da região. Ele era violento, gritava pelos caminhos, ferindo-se constantemente, possuía força sobre-humana e não usava roupas. Um retrato intenso da opressão espiritual.
Nos Evangelhos de Marcos (5:1-20), Lucas (8:26-39) e Mateus (8:28-34), esse milagre é relatado com algumas variações. Enquanto Marcos e Lucas mencionam apenas um homem, Mateus afirma que eram dois endemoninhados que encontraram Jesus ao chegar na região dos gadarenos:
“E tendo chegado ao outro lado, à terra dos gadarenos, saíram-lhe ao encontro dois endemoninhados, vindos dos sepulcros, tão ferozes que ninguém podia passar por aquele caminho.” (Mateus 8:28)
Essa diferença nos relatos, longe de ser um erro, pode ser explicada pelas práticas narrativas e culturais da época.
Por que Mateus menciona dois e os outros apenas um?
Na tradição judaica do século I, nem todos os envolvidos em um evento precisavam ser citados. Quando havia mais de uma pessoa, era comum mencionar apenas a figura principal ou mais notável. É possível que um dos homens fosse mais velho ou mais proeminente na história. Também existe a possibilidade de que o outro fosse uma mulher ou até mesmo uma criança — o que, segundo a cultura daquele tempo, justificaria sua omissão em alguns relatos.
O que significa “Gadara”?
Gadara é um nome de origem semita que pode ser traduzido como “recinto” ou “confim”. Hoje, o local é geralmente associado às ruínas de Umm Qais, na Jordânia moderna. Essa identificação é sustentada por evidências geográficas, históricas e arqueológicas.
Nos tempos de Jesus, Gadara era uma cidade fortificada na região da Pereia, situada a aproximadamente 8 km a leste do rio Jordão e cerca de 10 km a sudeste do Mar da Galileia. Era uma das cidades mais proeminentes da Decápolis — um grupo de dez cidades helenísticas localizadas a leste do Jordão, com significativa influência grega e romana.
Uma cidade helenizada em meio ao mundo judaico
Apesar de estar geograficamente próxima a regiões de maioria judaica, Gadara apresentava um forte caráter gentílico. A cidade era famosa por sua cultura grega, cunhava suas próprias moedas e produziu poetas e filósofos notáveis da Antiguidade. Um exemplo disso é o poeta Meleagro de Gadara, conhecido por suas obras influentes na literatura clássica.
Gadara foi dominada pelos romanos e, mais tarde, entregue por Augusto a Herodes, o Grande, como parte da estratégia política de domínio da região. Era, portanto, uma cidade de grande importância política, econômica e cultural.
Gerasa: vila ou cidade?
O nome Gerasa também aparece em alguns manuscritos e traduções do Novo Testamento. Localizada a cerca de 48 km ao sul do Mar da Galileia, Gerasa pode ter sido confundida com Gadara nas tradições orais e escritas posteriores. Alguns estudiosos acreditam que Gerasa era uma vila ou distrito menor na mesma região, enquanto Gadara seria a cidade principal — o centro urbano de maior influência e relevância histórica.
Porcos na história
O milagre do endemoninhado termina de maneira dramática. Jesus expulsa os demônios (chamados “Legião”) e permite que entrem numa manada de porcos, que logo corre colina abaixo e se precipita no mar. Esse detalhe é teologicamente relevante: os judeus consideravam os porcos animais impuros pela Lei de Moisés (Levítico 11), e portanto, não os criavam.
A presença de porcos na narrativa reforça o caráter gentílico da região. Era comum em áreas influenciadas por gregos e romanos que porcos fossem criados, o que torna esse episódio ainda mais realista e coerente com o ambiente cultural da época.
Gadara hoje: ruínas que contam histórias
Atualmente, as ruínas de Gadara podem ser visitadas em Umm Qais, na Jordânia. O local é um verdadeiro tesouro arqueológico e conserva evidências impressionantes do seu passado glorioso. Entre os principais achados estão:
- Dois teatros clássicos em excelente estado de conservação
- Uma basílica bizantina com mosaicos ainda visíveis
- Um templo greco-romano dedicado a deuses pagãos
- Uma estrada romana com colunatas em ambos os lados
Além disso, nas proximidades do Mar da Galileia, ainda podem ser vistos os restos de antigos sepulcros cavados nas rochas, voltados para o mar. Esses túmulos escavados seriam as cavernas onde, segundo a tradição, o homem (ou homens) possuídos viviam — uma ligação direta entre a narrativa bíblica e a arqueologia.
Um milagre com múltiplas camadas
O episódio da cura em Gadara (ou Gerasa) é rico em significado. Ele revela:
- O poder de Jesus sobre as forças espirituais malignas
- A universalidade da mensagem do Evangelho, ao alcançar até os gentios
- A ousadia de Jesus ao ir a uma terra considerada impura pelos judeus
- A importância da dignidade e da restauração humana, ao devolver o controle da mente e do corpo àqueles que estavam perdidos
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A história da cura dos endemoninhados em Gadara (ou Gerasa) nos transporta para um tempo em que as fronteiras entre judeus e gentios, puro e impuro, espiritual e físico eram quebradas pela presença transformadora de Jesus Cristo.
E as cidades onde tudo isso aconteceu — com sua geografia peculiar, cultura greco-romana e contexto espiritual — ajudam a tornar esse relato ainda mais vívido e significativo para os leitores modernos.
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6 respostas
Bacana demais, conhecer a história, cultura…
Que história linda, me fez perceber o quanto eu desejo pisar onde Jesus pisou
Texto rico em informações. Deus continue abençoando você, amado.
Bom dia..para mim é de uma grande importância todos os conteúdos trazidos pelo Rodrigo e toda sua equipe.!! Iniciei a pouco tempo, os estudos em Teologia,e pra mim é muito importante entender e agregar mais conteúdos aos meus estudos. Grato.
A biblia e a arqueologia conversando é maravilhoso!!!
A arqueologia bíblica é fascinante e nos conecta diretamente com as raízes da nossa fé. Explorar os locais onde Jesus andou é um sonho que muitos compartilham. O estudo da Teologia, aliado à arqueologia, enriquece nossa compreensão das Escrituras. Como podemos aprofundar ainda mais essa conexão entre a Bíblia e a história?